Retratos do leitor ausente

Um pensamento apenas aproximativo. Pensamento de um leitor que participa de um movimento que é um verdadeiro abismo: o abismo da leitura no Brasil. Mas o abismo que separa é também o que aproxima o leitor da leitura, o livro da vida.  Traço aqui um esboço, um desenho de um dos seus retratos mais visíveis: o retrato do leitor ausente.

Como a leitura aparece na obra da cultura de um país? Onde estão os leitores amados? Nas escolas e universidades? Vendo televisão? Na internet? Nas redes sociais? Nos cultos? Nos estádios? Ou estariam literalmente nas nuvens?

O leitor ausente é o mesmo que está diante da TV, nos joguinhos de mídia, nos portais sociais?

Os indicadores da pesquisa não falam por si mesmos nem para si mesmos. Falam para o país inteiro e para as autoridades deste país.

Nunca tivemos antes tanta necessidade de um pensamento que aproxime e nos aproxime o país de milhões de leitores e não leitores.  Mas qual é a “realidade” do livro e da leitura no Brasil? E quando se retrata a leitura, de qual leitura, falamos? E que livro, tocamos? Será o mesmo para todos?

***

Meu ponto de partida é uma afirmação simples, talvez, paradoxal. Uma afirmação igualmente aproximativa, de um conceito que é uma criação, um modo de subjetivação que tenta dar conta do objeto da leitura chamada “livro” e do sujeito da leitura chamado “leitor”.

O que vemos e lemos na pesquisa – e em nosso movimento/pensamento de leitura – é que o correlato do “leitor” não é nem pode ser o de “não-leitor”, mas o da sua ausência, isto é, a presença do leitor ausente.

Existem leitores. Milhões de leitores. Somos um país de leitores. 178 milhões de leitores e não leitores.

Mas de quais leitores? De quais livros? De quais literaturas?

A pesquisa nos oferece pistas para cada uma dessas questões. E a mais importante delas, sem dúvida, diz respeito ao súbito desaparecimento do leitor.

Ora, se os leitores estão ‘desaparecidos’, o que é medido não o é, necessariamente, retratável. Pois, como seria possível retratar uma ausência e, ao mesmo tempo, captar a sua presença?

Ausência/presença do livro; ausência/presença do leitor

O leitor está ausente na presença do Livro. Na presença do livro empírico – objeto de consumo, de mercado – disponível nas livrarias, nas escolas e bibliotecas públicas e demais lugares supostamente reservados ou consagrados ao livro e à leitura.

Mas o Livro está ausente na presença do leitor. E, nessa ausência do Livro, o leitor também se faz presente. Parece contraditório esse meu dizer, que  nos remete a Blanchot, na sua Conversa Infinita quando trata da Ausência do Livro. Informação paradoxal. E não poderia ser diferente.

A experiência da Leitura como a penso e vivo – que chamo de a Obra da Leitura – não apenas é antinômica na relação ao livro-leitor, Livro-Leitura, mas desfaz ou desmonta nossas certezas e os paradigmas consolidados em nossa cultura letrada. Como se sabe, a cultura já foi ‘literária’ na sua expressão primeira e, no Brasil, nos anos de 1950, conhecemos ou convivemos com uma cultura ‘televisada’ e, a partir dos anos 80, uma cultura ‘midiatizada’ pela internet e outros suportes computacionais, como celulares e redes sociais.

Nem parece leitura

Sejamos leitores ou neoleitores, meros consumidores de livros ou não-leitores, ou ainda, leitores comuns ou incomuns para diferenciar o leitor tradicional da nova geração de leitores – há, pelo menos, alguns gêneros que mais ‘aparecem’ na experiência diária da leitura.

(1) os livros religiosos e afins, tais como o ‘livro dos livros’, a Bíblia, e os de auto-ajuda; (2) os livros didáticos, aquelas leituras obrigatórias feitas em salas de aula, como dever de casa, temas de concursos, pesquisas, etc.; (3) os livros de ‘literatura em geral’ – está assim na pesquisa -, ou seja, a leitura considerada feita “pelo prazer da leitura”, por iniciativa do leitor em seu tempo livre. Cabe destacar que nesta ‘literatura em geral’ estão os mais indicados, os mais vendidos, numa língua ou nas várias traduções. E há um quarto tipo de livro ou de leitura, que são os livros (quase) invisíveis ou inacessíveis do grande público leitor, seja porque são ignorados – vistos sem serem vistos – ou reservados aos especialistas. Muitos desses livros são editados em versões “de bolso” ou traduzidos, esgotados, não-traduzidos, em formatos acessíveis do grande público.

De todo modo, a questão que permanece é a da ausência dos leitores, a questão da presença do leitor ausente. Presente em qual tipo de livro e de leitura; ausente em qual leitura ou livro?

Como se sabe, temos leitores e temos uma oferta generosa de livros no Brasil. Mas não são lidos. Ou são lidos de um modo que NEM PARECE LEITURA.

Não porque não somos um país de leitores, mas porque somos leitores ausentes no mo(vi)mento da leitura e, em quase tudo que produzimos de arte e cultura no Brasil, de tal modo que NEM PARECE CULTURA.

Fizemos a experiência da leitura de forma tão evasiva, desatenta, dispersiva, rotineira e mesmo banalizada  – diz-se naturalmente ou automática – que nem nos percebemos leitores. Estamos ausentes na leitura que fazemos. Lemos por ler, assim como comemos por comer. Não dizemos “não comemos” como não dizemos “não lemos”. Estamos tão ausentes no hábito de comer quanto estamos ausentes no hábito de ler.

É isso que a pesquisa “Retratos da Leitura” é reveladora ali onde o leitor se esconde. Quem são os milhões de leitores e os milhões de não-leitores? Como chegar até eles? Ora, a pesquisa não pode ser cobrada por isso, pois sua finalidade é outra, razão pela qual seu endereçamento nos aproxima do abismo de que falava acima.

Lugar de ler, lugar comum

A pesquisa retrata outros aspectos importantes da leitura e do leitor brasileiro.

1 – Revela o seu aspecto mais visível, seus lugares-comuns mais comuns, como a biblioteca, a escola, a livraria. Se os leitores – alfabetizados e letrados – existem, onde estão esses leitores ausentes?

2 – Tudo indica que o ambiente da leitura deslocou-se (descolou-se?) nos últimos tempos. Dos espaços públicos tradicionais ou consagrados, foram para os espaços privados. Mesmo numa escola pública o espaço do livro acontece no espaço privado ou reservado a poucos…

3 – Na instituição escolar, os espaços da leitura são reservados, isolados ou separados do resto da escola, é possível afirmar que ali onde o leitor se encontra, a experiência da leitura é feita de forma reservada ou separada do público.

4- Ou então, ela acontece nos eventos ou espetáculos da leitura como são as feiras e bienais que anualmente mobiliza leitores de todas as idades e lugares e onde o evento da leitura ganha maior visibilidade.

5- E como num fenômeno mais recente, que não é o da internet, nem das redes sociais, mas aquele que chamo de práticas cineleitoras, onde se encontram obras cinematográficas produzidas a partir de roteiros originais ou adaptados de livros ou personagens e muito rapidamente entram fila ou na lista dos mais vendidos.

6 – Enfim, a leitura (o leitor) está integrada e diluída nos suportes computacionais das redes sociais e, sobretudo, no mundo das celebridades, nos  eventos do mercado editorial, entre os públicos de cinema e os membros de igrejas ou seitas, todos de algum modo participam da experiência da leitura e se inserem na corrida frenética da vida cinética que esses movimentos incendeiam e desencadeiam.

Leitores letrados analfabetos não leitores

Outro aspecto importante é o da relação entre leitores e letrados, uma diferença que apenas tangencia a pesquisa. A divisão tradicional que se fazia no país entre alfabetizados e analfabetos não dá conta da subjetividade leitora no século 21.

Basta-nos comparar os tipos de analfabetismos e o processo de alfabetização em curso. E  teremos outro ‘recorte’ da leitura no Brasil. Se a pesquisa mostrou como, em pouco mais de cinco anos, lá se foram milhões de leitores, sobretudo na região sul do Brasil, imaginemos o que aconteceu com outros parâmetros de leitura.

Por volta dos anos 1922, éramos um país de formação agrária e de não-leitores, uma população com de 65% de analfabetos das letras. 100 anos depois, nem 10 % de analfabetos das letras, mas entre 25% à  50% de “analfabetos funcionais”. Os 48% de brasileiros com acesso a internet permitem-nos considerar que, em termos de alfabetização digital, temos muito a crescer.

Vê-se como o analfabetismo mudou públicos e de configuração, o que em parte explica porque o leitor tradicional “desapareceu” do mapa. São pistas para uma possível busca de respostas sobre o desaparecimento dos leitores no Brasil e em outras partes do mundo.

De tão presentes os indicadores da pesquisa, excessivamente presentes por seu excesso de evidências, são, talvez, evidências de um país que combina a modernidade com o atraso, e estas, com a hipermodernidade. Uma espécie de país-monstro que comporta, a um só tempo, a alta cultura com a baixa leitura.

O leitor disfarça-se de não leitor

O leitor é um não-leitor – no sentido definido pela pesquisa -, não apenas porque não freqüenta bibliotecas mortas mas torna-se um leitor ausente por investimento próprio, interesse ou desinteresse premeditado, desejo de consumo não consumado, sublimado ou explicitado. O leitor investe no seu próprio desaparecimento junto ao movimento (de consumo e de consumação) que participa em velocidades cada vez mais céleres.

Sem tempo para dedicar-se à leitura e nem de aparecer lendo, o leitor prefere ler em casa e cada vez menos nas bibliotecas ou nos lugares formais ou tradicionais da leitura.

Lê-se também na escola. Pela obrigação da leitura e pela necessidade criada em torno da escolaridade, mais do que em vista do autoconhecimento; interesses de carreira, mais do que da vocação ou profusão cívica ou humanitária; da elevação do nível social, que por valores vitais, superiores ou nobres.

O leitor que se disfarça de não-leitor, está presente naquilo que é o cotidiano e o habitual, o rotineiro e o universal, o automatizado e o naturalizado. Vive no pique do movimento sem se dar conta de sua presença-ausência. Ausente de si, desgovernado de si no excesso de sua presença. Diria mesmo, descarrilado da própria subjetividade subsumida na cinética da modernidade.

Observa-se que este mesmo leitor está ausente no processo de criação elevada de um outro patamar cultural e artístico, diferente de padrão civilizatório como aqueles patrocinados pelas mídias de entretenimento, desinibição e lazer.  Isso é o mais preocupante.

Leitores literalmente nas nuvens?

Afirmação de uma ausência, desaparecimento público explícito, despacho midiático instantâneo – diz-se, em tempo real – os leitores literalmente foram parar nas nuvens.

E uma vez mais, o que é sólido, literalmente, se desmancha no ar.

Como se dizia antigamente, não dá mais o ar da graça, da presença, da visibilidade. Qual nome for mais adequado, o conceito melhor aplicado, a explicação que prover, o fato é este que: somos um país de leitores ausentes.

Vivemos em plena modernidade e a modernidade – ainda que faça dobrada, ora com a modernidade do atraso, ora como pós-modernidade – determinada pelo ‘acúmulo’ civilizatório e cultural.

Não há o que comemorar com os ‘indicadores de leitura’ retratados na pesquisa. Mas, com certeza, temos muito a pensar e a fazer.

Essa talvez possa vir a ser uma explicação que implica e complica muito ao se lidar com indicadores de leitura separados seja da questão da CULTURA seja da questão da EDUCAÇÃO no país.

Assim que li pesquisa pensei sobre a noção de “não-leitor” e ao conceito-noção de “não-lugar”.

Toda afirmação que parte de uma negação não é apenas problemática, ela é paradigmática, ou seja, valorativa, axiomática.  Há uma ideia do não-lugar como há uma noção do não-leitor. O território da ausência não cabe nesta visão, já que não se trata de territórios constituídos, mas espaços instituintes. Purgar a teoria da leitura afirmando-a no leitor, de um lado e, no não-leitor, de outro, é colocar a leitura ora no paraíso, ora no inferno.

Seria essa uma falsa antinomia, um jogo do sim e do não, ou, uma vez mais o desafio de desarmar os paradigmas da modernidade e pensar para além dos dilemas entre o ser ou não ser (leitor), do estar sem “ficar” (na presença do livro), ou mesmo, fora da tradição em busca de outra futuridade (na formação e subjetividade leitora).

Isso só é possível por um privilégio de leitores que somos, aliás, um duplo privilégio: o primeiro, de poder ser leitor a vida inteira, e, o segundo, de ser contemporâneo a alguns intercessores que fazem pensar a Leitura como Obra de Vida e a Escrita como poética do Destino.

Aproximações e abismos

Onde terminamos, começamos, deixando para o debate algumas questões que se destacaram nesta primeira leitura:

1.     A questão do tempo para se medir a leitura: três meses é o tempo leitor?

2.     A questão do tudo – qual a ‘área de cobertura’ – de uma pesquisa da leitura?

3.     A questão do ser leitor e do ser não-leitor. Ou seria do neoleitor?

4.     A questão do gosto:  ler-se por prazer ou por obrigação altera o gosto da leitura?

5.     A questão do lugar: ler em casa, na biblioteca, na escola ou nos lugares de passagem?

6.     A questão do agente (mediador) de leitura: a mãe, o professor, o próprio leitor.

7.     A questão do conjunto/separado: o quantitativo e o qualitativo da pesquisa. E, finalmente,

8.     A questão que não se formula: a questão do leitor ausente.

Penso que o conceito de leitor ausente (como Blanchot nos apresenta com a sua fórmula da “ausência do livro”) pode nos ajudar a planejar diferente o sonho de construir um país de leitores e agir na formação de uma (nova) geração de leitores para a vida inteira.

Também no debate a ser feito, perguntarmo-nos sobre a função e o caráter da pesquisa, seja ela qualitativa e/ou qualitativa. Ora, toda pesquisa é um endereçamento da resposta-pronta, pré-fabricada na sua orientação,  e,  como neste caso, sabe-se que “opinião não basta”.

Não existe resposta fácil para o súbito desaparecimento dos leitores no Brasil. Talvez as pistas estejam presentes no mal-estar da cultura e do estado civil da miséria da política brasileira combinada com a miséria da filosofia.

De todo modo, a experiência solitária da leitura não pode ser qualificada (corrigida) nem quantificada (medida), apenas aproximada. Essa aproximação (qualificação e quantificação reunidas na sua dispersão) pode expressar a leitura ausente, a leitura invisível, a leitura fora do mapa da leitura.

E se de fato a experiência da leitura é uma ausência que se afirma no ato mesmo do seu desaparecimento – não se vê mais o leitor lendo – não se capta a densidade da leitura. Se, quando leio, ausento-me, desmaterializo-me, então, como medi-la, como conferi-la, comprová-la, inseri-la, mapeá-la, retratá-la?

*José Paulo é escritor, autor de “Uma Utopia de Leitura” e “Escritos da Espera – Fragmentos do futuro, Pensamentos do acaso”, entre outros. É coordenador do Projeto Bom de Ler da Cidade Futura e do Instituto da Parati.

ENSAIOS

Written by : José Paulo Teixeira

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Donec fringilla nunc eu turpis dignissim, at euismod sapien tincidunt.

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